segunda-feira, novembro 11, 2002



Music For Courage & Confidence, capa da edição inglesa


Só pra não perder o costume de puxar o saco do Mark Eitzel, um dos melhores compositores desde sempre.


Mark Eitzel
Sexta-feira, 4 de Outubro de 2002

o clube do nonsense americano


João Bonifácio

O antigo vocalista dos sublimes American Music Club está de volta com um disco de versões de canções dos anos 70 que cheira a soul por todos os lados. Ainda desiludido com a vida e com a língua mais afiada que nunca. Relato possível daquele que um dia cantou "my revenge against the world is to believe everything you say".

"Diga-me uma coisa, meu senhor: porque é que, neste mundo, para se ser profissional e ter êxito, tem de se ser extremamente aborrecido?" A questão surgiu já no fim da conversa e em tom quase confidencial e magoado, da boca de alguém que há muito deixou de acreditar em histórias de fadas. E que há muito só acredita na garrafa ("Quando não bebo fico em casa e quando fico em casa fico a olhar para as paredes, por isso saio e vou beber. Pelo menos aproveito para conhecer mulheres."). E que prefere "fazer figura de parvo e fazer as pessoas rir" em vez de discutir as suas canções. Dele próprio, diz ser "a fucking loser", ou não tivesse o hábito de assinar os direitos de autor das suas canções como "he who lost in life".

Mark Eitzel tem 28 anos - é ele quem o diz. É um dos maiores compositores vivos, um homem nascido com uma voz de ouro, e um dos melhores letristas de há já uns bons 16 anos para cá, quando se fez notar como compositor e voz dos magníficos American Music Club (AMC). Para variar, está falido.

A conversa veio a propósito do recente "Music for Courage and Confidence", quinto disco a solo, em que faz versões de "canções de amor parolas dos anos 70" e em que canta como um fundamentalista a ler o evangelho. E em que surge mais sereno, longe da raiva que era a imagem de marca dos AMC, ou da depressão que assolava "Caught in a trap and I can?t back out 'cause I love you too much, baby".

Importava saber: porque é que um disco gravado em 1998 só agora foi editado? Porquê um álbum de versões repleto de canções e autores desconhecidos, à excepção de Boy George e Phil Ochs? "Basicamente foi ideia do tipo que produziu o disco. Ele prometeu-me um grande contrato discográfico e ganhar muito dinheiro. O que não aconteceu. Por isso é que só editei agora. É que, para variar, estou falido".

Nada a que não esteja habituado, diz, emitindo uma sonora gargalhada (que esteve presente ao longo de toda a entrevista, bem como um inesperado sentido de "nonsense"). "Quando estava nos AMC, a banda estava falida e o nosso agente estava rico. Quis despedi-lo, mas a banda não quis. Para me livrar dele tive de acabar com a banda. Só depois descobri que havia uma cláusula no contrato em que éramos obrigados, caso a banda acabasse, a dar-lhe 20 por cento de tudo o que ganhássemos durante três álbuns. Foi uma estupidez. Sou mesmo estúpido."

droga de vida. Claro que o tom aparentemente descomprometido esconde amargura. Quando lhe perguntamos se, com o novo disco, está a tentar ser menos negro, a resposta é viperina: "Cresci a ouvir John Martin, Joni Mitchell, o punk rock, Nico, Nick Drake e nunca achei que aquilo fosse negativo, achava que era óptimo, que era 'cool'. Para mim, essa coisa do 'negro' é uma daquelas cenas pós-Prozac, percebe?"

Anda tudo a querer ser feliz? "Feliz?! Andam é todos drogados da cabeça a dizer que são felizes, mas não são nada felizes. Os meus amigos ou tomam drogas ou tomam Prozac... As pessoas andam é drogadas. Até porque aquela porra é fortíssima. Mas é uma marca da cultura ocidental: tem de se ter uma droga para sobreviver..."

Diga-se de passagem que, por esta altura, já a conversa se desviara do tema inicial - o álbum. Até porque, quando se questiona Eitzel acerca de qualquer aspecto mais específico da sua música, o mais provável é ouvir-se um "não sei, não faço a mínima ideia. Só faço as canções, não penso sobre elas. Não sou muito esperto, sabe? Enquanto artista, o que faço é deixar o cérebro à porta e espremer o coração. Por isso até me dá jeito ser um bocado burro."

Claro que nem sempre ser burro lhe traz vantagens: "Já fui convidado para fazer música para filmes várias vezes, mas não quero fazê-lo outra vez... Ainda tinha de ir para Hollywood... Não sei... Não me interessa... Os tipos dizem 'queremos 10 canções em duas semanas' e depois dão-me o filme e eu 'oh! o filme é um merda!' E não sinto nada. O que é que posso fazer se não sinto nada? Há gajos que fazem uma canção em 10 minutos, mas eu tenho de sentir. Não sou suficientemente bom para fazer canções assim".

Mas nem tudo é negativo no mundo de Eitzel. Pelo menos ainda há compositores que fazem "canções sentidas", como ele gosta. "O Will Oldham também faz canções assim. Adoro-o. E há o Bob Dylan. E o 'Songs of Love and Hate' do Cohen. No 'Let's sing another song, boys', aquela parte do lalalalala consegue ser mais tocante do que as palavras. É uma canção estupenda."

Aqui a conversa entra no seu ponto mais surreal. Diz-se a Eitzel que "I came so long for beauty", de Cohen, podia ser uma canção sua. O que se segue é uma demonstração do bom humor.

"O Cohen anda a roubar-me há anos. É irritante. Eu já o processei, claro. Ainda está tudo muito amargo entre nós. Agora a sério, ele nem sabe quem eu sou. Mas os meus advogados sabem onde ele mora e demore o que demorar vamos apanhá-lo. Claro que vou ter de espancá-lo. No tribunal não vai resultar, porque ele é rico e poderoso. Mas fui a casa dele há algum tempo e atirei um tijolo pela janela. Veio a criada e espanquei-a. Mas da próxima ele não escapa."

Tenta-se levar de novo a conversa para "Music for Courage and Confidence", para saber qual foi o processo de selecção das canções. "Não sei. O produtor é que escolheu. Ele chegava à minha beira e dizia 'o que é que achas do 'Rehearsals for retirement?' Eu dizia que sim. Adoro o Phil Ochs. Só escolhi o 'More more more' e o 'Do you really want to hurt me?' Até porque os originais são pirosos."

"Music for Confidence and Courage" é, à excepção das canções escolhidas por Eitzel (trabalhadas electronicamente, numa continuação de "The Invisible Man", álbum anterior), um disco de guitarra, baixo, bateria e um piano ou um órgão. Simples, pop, acessível e muito bonito.

"É um bom disco, gosto dos meus discos. Gostava de voltar a fazer um disco com mais arranjos, mais produzido, como o '60 watt silver lining', mas não tive dinheiro. Nunca tenho."

Mas quando se coloca a hipótese de estar a ficar mais homogéneo, ao contrário do que acontecia nos AMC, Eitzel volta ao discurso habitual. "Não sei... A única coisa que sei é que nos AMC havia muitas guitarras. E eu não sei tocar guitarra. Infelizmente componho à guitarra. Deve ser por isso que não vendo quase nada."

Depois desata a rir à gargalhada. Mas não desarma. Questionado sobre os seus planos para o futuro, primeiro informa que a Matador lhe pediu mais um disco. Depois, bem, depois é uma visão nonsense do sonho americano.

"Espero enriquecer. Estou farto de tocar ao vivo e de dar entrevistas. Sem ofensa, claro. Vou enriquecer e comprar uma casa e... uma casa com piscina mesmo ao lado do Cohen. E dar grandes festas e embebedar-me todas as noites. E depois mijar à cerca e gritar 'vai-te foder Cohen, pára de me roubar!', isto às 5 da manhã."

Foi Mark Eitzel, "americano turista na América", como se auto-define, em discurso directo sobre "Music for Courage and Confidence" (podia haver título mais irónico?) um disco muito, muito bonito, em que a voz serve semi-rumbas para órgãos foleiros ("Gentle on my mind") ou dá um tom sério a elctrofunkalhadas dançáveis ("Move on up", fantástica). Longe do génio de "Mercury", dos tempos dos AMC e de "Caught in trap...". Mas quem tem uma voz assim não tem dificuldade em transformar o lixo em oiro. O disco é a prova. E a única vingança possível é acreditar em tudo o que este senhor canta.

Texto extraído do Jornal Público de Portugal.
Sem autorização deles, é claro.



Mark Eitzel / © Laurent Orseau