Sou um senhor repleto de preconceitos. Minhas opiniões valem mais do que a experiência e a observação. Não me sinto ajustado a esse tempo, tampouco ao país onde vivo.
Culpa minha. Tudo minha culpa - à busca da inútil supercivilidade. Quem sou eu?
Resposta: um senhor repleto de preconceitos.
Sou um indivíduo quase sempre melancólico por que gosto de ser assim.
Migala
Mudando de assunto (ou não?) os espanhóis do Migala arrebataram de vez a minha admiração. Seus quatro álbuns servem de trilha sonora para as minhas duas últimas semanas assim como tenho visto filmes do Hitchcock.
Não sei se há muita relação entre Migala e o Hitchcock - talvez se confirme porque tive um retorno à obra do Fernando Pessoa (inspirado pelo meu amigo, Camilo Rosa - quase sempre).
Nunca vi os filmes de Hitchcock pelo rótulo "suspense" e sim boas histórias contadas sob uma direção perfeita, ofício de mestre.
Quanto aos Migala, posso ainda escrever um pouco sobre seus álbuns e os matizes de cada um.
Acuarela, 1997
O álbum de estréia dos Migala é o mais experimental do grupo. Talvez porque agrega influências de Sonic Youth, Mazzy Star, Smog - somadas ao desespero de Leonard Cohen, Nick Drake e Nick Cave.
Diciembre, 3 a.m. dá argumentos de sobra para a evolução contida nos outros álbuns.
Entre os 18 temas que compõem o álbum, destaco "That Woman", as duas versões de "Isabella Afterhours", "Last December", "Schizo-Doubt", "Noise & Percussions", as versões "Fade in to You" dos Mazzy Star, e "Moon River" de Henry Mancini e Johnny Mercer para a trilha do clássico Breakfast at Tiffany's - Bonequinha de Luxo no Brasil, de Blake Edwards.
Acuarela, 1998
Mais contido que a estréia, Así Duele Un Verano inicia-se com sons de gaivotas e um acordeão em "Wait The Ships Come Back", seguindo por dois outros temas instrumentais "The Whale" e "320 m. to the surface".
"Low of Defenses" apresenta um ambiente tão bonito, quase catártico, próximo dos temas do sucessor, "Arde".
"The Gurb Song" é, sem dúvida, o melhor momento de Así Duele un Verano:
“Queria que alguém entrasse em minha vida como um pássaro entra em uma cozinha e começa a quebrar coisas e esbarrar em portas e janelas, deixando caos e destruição. Por isso aceitei seus beijos, como quem ganha um panfleto no metrô. Sabia, não me pergunte porque ou como, que dividiríamos até nossa pasta de dentes.
Nos conhecemos melhor cuidando das cicatrizes um do outro, evitando chegar perto demais de saber demais. Queríamos que a felicidade fosse como um vírus que alcança todos os lugares de um corpo doente.
Transformei minha casa em um colchão d'água e seus seios em castelos de areia negra. Ela me deu suas metáforas, suas garrafas de gin e sua coleção de selos da África do Norte. À noite, conversávamos em sonhos e sempre, sempre concordávamos. Os lençóis pareciam-se tanto com nossas peles que paramos de trabalhar.
O amor tornou-se um homem forte, terrivelmente acessível, um mentiroso, com grandes olhos e lábios vermelhos. Ela me fez sentir novo. Assisti a ela se foder, lose touch, ouvimos Nick Drake em seu gravador e ela me disse que era escritora. Li seu livro em duas horas e meia e chorei o tempo todo como se estivesse assitindo Bambi.
Ela me disse que quando eu achasse que ela tinha me amado tudo que poderia, ela me amaria um pouquinho mais. Meu ego e seu cinismo se deram muito bem e nós dizíamos "o que você faria se eu morresse?" ou "e se eu tivesse Aids?" ou "você não gosta de Smiths?" ou "vamos trepar agora".
Deixamos nossas impressões digitais por todo o quarto. O café da manhã era feito automaticamente, e se viesse em um carrinho, sem as mãos. Competíamos para ver quem tinha os melhores orgasmos, as visões mais bonitas, as maiores ressacas. E se ela engravidasse, decidimos que seria culpa das mãos de Deus. O mundo era nossa ostra. A vida era a vida. Então ela teve que voltar para Londres, para ver seu namorado e sua família e seus melhores amigos e seu bichinho chamado "Gus". E sem ela, virei uma bagunça.
Pintei minhas unhas de preto e cortei meu cabelo.
Abro minha coleção de fotos e nosso passado pode ser ilimitado e eu sei que o processo é fatiar cada seção da minha história, deixando-a mais magra e mais magra até que fique sozinho com ela. Sinto-me uma merda o tempo todo, não importando quem eu beijo ou o quão galante tente ser com meus novos pássaros. É esse é o ponto, não é? Novos pássaros que vão me jogar ao longo de um fio do subterrâneo para o céu, para o mundo”.
O melhor texto do álbum (aqui traduzido por Clarah Averbuck) é recitado por uma base que lembra os Tindersticks.
Há ainda as belas “Ancient Glaciar Tongues”, “On not given farewells...”, “Unlost memories”, “Regular Storm Sounds”, e “When I Go, I Go”.
Acuarela/Sub Pop, 2001
O terceiro álbum do Migala adquiriu tanto respeito que cativou os “executivos” da “independente” Sub Pop a lançá-lo nos EUA com novo projeto gráfico. O disco recebeu resenhas entusiasmadas em várias publicações.
Não era para menos. Arde tem atributos indescritíveis e seria perda de tempo tentar enumerá-los. Melhor gravado e produzido, é certamente uns dos discos mais tristes que já ouvi.
O mote é o fracasso: “Todas as garotas destes tempos de desastre querem uma festa que eu não são capaz de dar” (“Our Times Of Disaster”) e a tragédia “Seu eu pudesse, por um minuto, sucumbir ao desastre de todo dia, deixar-me ir, desapegar-me... Acho que seria possível colidir com um dos estranhos que costuma cruzar pela rua e ter uma premonição de felicidade. Mas agora, é claro que não posso e, provavelmente, um daqueles fantasmas viria toda a noite fustigar minha estúpida culpa, como se fosse um anel de fogo. E quando eu finalmente dormisse, seria sempre o mesmo sonho: areia caindo rapidamente em um sino de vidro. A areia muito clara, o vidro tão frágil”.
Circulam fantasmas por todo o álbum. “Primera Parada”, “Primer Tren De La Mañana” e “El Caballo Del Malo” demonstram que Arde faz as pazes com as raízes espanholas do grupo; “High of Defenses” é a continuação de “Low of Defenses” do álbum anterior. E a emotividade contida em “Last Fool Around” pode levar o ouvinte às lágrimas: “Hoje é um dia de desastre. Estou no mesmo bar. Gente conhecida a passar distante. Somente a meu primo saúdo, quando sai para comprar pão e cigarros. E através do cristal, as mulheres olham por cima do ombro. Deveria haver algo mais nestes tempos, mas sinto que o melhor que posso fazer. (Pergunto-me se posso pagar a conta). As paredes falam de seu passado. É difícil falar sem ira (destes tempos ), mas me alegro em falar sem ela. Agora estou feliz porque alguns se casaram e tiveram filhos para sua felicidade. Sei que deveria fazer algo mais do que ler poesia”.
Acuarela, 2002
O mais recente álbum do grupo, Restos de um incêndio, é composto por canções já conhecidas do grupo. Não se trata de uma coletânea, mas sim a releitura de algumas canções do álbum anterior, fugindo à mera reprodução de idéias já utilizadas.
Soa como um álbum inédito e merecedor de atenção.
Os títulos das canções estão grafados em espanhol e os arranjos ainda mais elaborados em “La Cancion de Gurb” em versão instrumental, “El pasado diciembre” ainda mais arrebatadora, assim como “El ultimo devaneo” e “Tiempos de desastre”.
“Instrucciones Para Dar Cuerda A Un Reloj” tem texto de Julio Cortázar, e provavelmente lido por ele mesmo, sobre o instrumental composto pelos Migala.
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