sexta-feira, janeiro 23, 2004

Being João Gilberto







Estava a pesquisar a discografia de João Gilberto e encontrei essa preciosidade
que é um texto do Turíbio Santos para o Jornal do Brasil sobre o "o caçador da MPB".

Ele é o rei dessa arte: dizer um poema que não esconde a frase musical, mas que a realça

Turíbio Santos


Uma das experiências mais curiosas que já fiz com o violão foi tentar acompanhar João Gilberto. Não. Não foi com ele ao vivo. Na realidade foi acompanhar uma gravação do cantor. Do tipo passo a passo.

Vamos imaginar você seguindo as pegadas de alguém na areia e colocando seus passos exatamente em cima dos passos da pessoa seguida. Assim, descobri primeiro a harmonia do João. Precisa, impecável, com soluções indiscutíveis. Trabalho de ourives.

Depois desvendei (ou tentei) o ritmo. Os problemas foram se complicando. A invenção do João é imbatível e o pior: sua execução é de uma perfeição que beira as raias do impossível. Maior surpresa ainda: ele extrai mensagens polifônicas (várias vozes, para os que não sabem) do seu violão, como se cada corda fosse tocada por um instrumentista diferente.

É isso mesmo. Aquele blem-blem que as pessoas utilizam para tentar ridicularizar a bossa nova, no caso dele, é a soma de conhecimentos musicais oriundos de uma prática, uma aplicação, um treinamento intenso. Coisa de João Gilberto.

Eu fiquei tão espantado com o resultado dessa experiência, a princípio singela e mais tarde diabolicamente complicada, que passei a entender melhor a aura de magia que envolve o cantor. Ele cerca suas canções com o instinto de um caçador. Ele as captura, se apaixona, enche de mimos, protege-as, e, finalmente, quando libera-as do cativeiro, elas têm a sua marca. Todos nós, intérpretes, fazemos isso de alguma maneira. No caso presente, o que interessa é a intensidade dessa devoção pela obra a ser interpretada. Quando ouço um Jacques Brel, uma Edith Piaf, um Sinatra ou Louis Armstrong morro de inveja da possibilidade de dizer poemas ao mesmo tempo de uma frase musical.

João Gilberto é rei dessa arte: dizer um poema que não esconde a frase musical, que a realça, que a justifica. A cópia é uma das maneiras de se aprender nas artes. Copiar João Gilberto é difícil, aliás, dificílimo. Mas quem tiver a paciência e a disciplina do exercício vai receber um banho de aprendizagem, uma cachoeira musical. E os que não tiverem, pelo menos fiquem atentos à concisão, à economia e objetividade desse caçador incansável da nossa música popular.