Satisfação
Os leitores (se porventura ainda existir algum) contentem-se em saber que ando muito ocupado. Mas em breve, estarei atualizando esta página com mais freqüência.
American Music Club - Love Songs For Patriots (Merge, 2004)
Por João Bonifácio in Público
Kathleen morreu, pela primeira vez, em 1990, numa canção homónima dos American Music Club em que o seu há muito namorado, Mark Eitzel, gritava os carcinomas pulmões afora, assim: "When no-one cares for you/ you're made of straw".
Depois, há dez anos, Kathleen Burns caiu do topo de uma seringa, a queda ampliada pela gravidade da SIDA, os American Music Club (AMC), depois de uma mão-cheia de obras-primas de febril desafecto e indiferença geral, fechavam as portas, e Eitzel, orfão de pais, de mulher e de banda, iniciava a vagabundagem a solo, um primeiro (extraordinário) álbum ao piano, com metais e orquestrações, de novo a falta de dinheiro, os pés de palha e a garrafa de versos que ciclicamente afundavam no gargalo a impotência.E dez anos depois de a morte de Kathleen ter atirado os AMC para as prateleiras do opróbio de culto e Eitzel para a eterna imagem do andarilho, dez anos depois, Vudi, o homem da guitarra nos AMC, pega na mão do companheiro de ressacas, faz-lhe ver que há um idiota lobotomizado à frente do país e Eitzel (raiva, cuspo, sangue, vísceras e demasiada inteligência em cada vocábulo) aperta os testículos aos EUA e acaba com a culpa: à segunda canção, "Another Morning", ele enterra Kathleen pela terceira (e, segundo diz, última) vez, assim: "And I will not bring you another morning/ another morning with Kathleen".
Eitzel atira o fantasma da culpa para o baú e pela primeira vez os American Music Club são mais políticos que intimistas e em "Love songs for patriots" já não despejam gasolina pela garganta de cada um de nós abaixo antes de nos oferecerem um cigarro, não, agora o homem até canta "Only love can set you free/ and I've been so lucky", não, "Love songs" é feito de outra matéria, matéria externa, e não devia ferir. Não devia - mas fere.Logo à primeira um riff ferrugento de guitarra introduz a récita de Eitzel: "Ladies & Gentleman, it's time for all the good in you to shine" - piano, sons dissonantes, percussão jazzy intoxicada - e um país chamado à liça da escolha. Seco, duro, punk num bar de veludo rasgado - e a frase: "If you can't live with the truth/ try and live with a lie". Com dedicatória e beijinhos para o Georginho.
O Georginho que podia ser o stripper de "Patriot's Heart", os graves do piano cravados em cada estrela da bandeira, camadas de sons a vagabundear pela decadente arrogância americana - e Eitzel a divertir-se com a identificação entre a América e um stripper: "and dollars pour like ashes/ from the patriots heart/ c'mon grandpa, remind me what we're celebrating/ and how you made a dead man come".
Quinta canção e "Job to do" traz, pela primeira vez, AMC vintage: a guitarra dedilhada e depois o acorde menor com a banda a desabar num turbilhão de ruído e feedback ainda mais sujo. A coisa acalma em "Mantovani the mind reader" (Eitzel com piano à Waits dos primeiros anos e voz de insónia), volta à marca AMC em "Home" e depois isto (mas isto não se explica, isto não diz nem por um segundo do desespero desta voz): "Home, home, home, I hope I make it home", com o simples truque da repetição do fonema ("ho") por cima de um mesmo acorde de piano martelado a dar, só por si, a ideia de âncora que se associa a lar.Chega-se ao fim da estrada e até a gravilha se ama - e Eitzel pode cantar "maybe the worst is over" numa canção ("Myopic books") dedicada à mãe - e é como se os dez últimos anos não tivessem passado: os arranjos de metais, a meticulosa arquitectura de punições sonoras a devir em bálsamos de melodias delicadas, o esqueleto desassossegado do baixo e da bateria afogados em Mingus e a sonoplastia suja, infectada, das guitarras e dos órgãos ciclotímicos, o carrossel de sons mínimos que soam a distúrbios psiquícos e obriga a audições sucessivas para nos habituarmos - nada mudou. Há, talvez, um olhar ainda macerado, mas agora crente em si mesmo. Aqui e ali, há esperança.
"The horseshoe wreath in bloom" (magnífica) chega a ser quase pop (e de uma ironia afiadíssima). A América continua a merecer um esventramentozito de quando em vez. Eitzel parece menos o rei-palhaço da beira de estrada e mais humano. A purga soa mais que nunca a bênção e nós, nós somos ainda a mesma miséria - apenas um pouco menos piores que ontem porque temos "Love Songs...". Aproveita-se e agradece-se à demagogia disfarçada de pragmatismo de George W. e cronistas ao seu serviço - ao fim e ao cabo, são eles a inspiração para uma obra-prima. Sim, obra-prima.
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