por João Bonifácio
Dez anos depois de ter posto termo à aventura gloriosa e falhada dos American Music Club, Mark Eitzel volta ao lugar do crime mas diz que já perdeu o sonho "de vir a ser uma rock star". Dez anos depois de ter posto termo ao mais belo combo americano de andarilhos dos últimos vinte anos, de ter criado um universo inimitável, de ter iniciado o tão em voga cruzamento entre country, folk, punk e vaudeville, Mark Eitzel reúne-se aos antigos companheiros de penúria para conceber aquele que é um dos grandes discos de música americana do ano, "Love songs for patriots". Disco novo com ideologia anti-neo-liberalismo inclusa - mas é treta: é ainda e sempre a decantação carinhosa da América do ponto de vista da marioneta a quem roubaram os fios de nylon, o bom e velho pontapé nas virilhas de um país que há muito perdeu os testículos, como Eitzel tem repetido ao longo dos anos. País que Eitzel só ama por tanto o desprezar.
Gostávamos de dizer: falámos com Mark E., senhor de tal, dizem que cançonetista, mas é mentira, aquilo não foi falar. Estranhíssima personagem, Mark Eitzel, mesmo que ao longo do tempo tenhamos aprendido a viver com o seu auto-desafecto, a auto-ironia, a irrisão. Conhecemos-lhe o mau humor, o humor amargo, o humor cínico, o humor violento, o humor patético, enfim, toda uma artilharia de doçaria inclusa. Naquele dia estava mal-disposto. Tem o seu direito. Ninguém anda por aí impunemente a resgatar as palavras ao barro das coisas para depois sorrir como se não pesasse. Pesará, certamente. Uns dias depois da não-conversa, o cowboy lobotomizado voltou a sentar-se à sela do elefante cego chamado América. Se cumprir a promessa, há-de estar de partida. Ainda e sempre e como na canção: à procura de "Home". Como se não soubesse que a morada de um homem está nas palavras. As dele. Acreditai.
obsessões de um andarilho. Sempre houve canções-âncora na obra dos American Music Club (AMC). Bandeiras para a extrema unção do abandono. Não se fala delas em voz alta, talvez porque doa, não se sabe. Sabe-se, isso sim, sempre, quem presta culto às esculturas estaladas de uma cerzidura negligente de Eitzel e seus comparsas. Os devotos conhecem de cor cada palavra de "Kathleen" ("United Kingdom", 1990), de "Last Harbour" ("California", 1988), de "I've been a mess" ("Mercury", 1993) ou de "What holds the world together" ("San Francisco", 1994 - já agora, a resposta à pergunta do título da canção é simples: "o vento soprando nos cabelos de Gena Rowlands"; pode haver pergunta e resposta mais bonita?). Em "Love songs for patriots" há três e assumidas, até porque retornam às eternas obsessões de Eitzel: "Another morning", "Patriot's Heart" e "Home".
Em "Patriot's heart" retorna-se à imagem da América decadente. "O patriota da canção é um 'stripper' que tira a roupa para pagar a coca", diz Eitzel, e ficam a saber que o seu nome verdadeiro é "Spanky" (bonito...), e que o bar que inspira a canção pode ser encontrado no Ohio, sítio que Eitzel define como "horrível, sujo".
E pronto, estamos em território Eitzeliano. Porque é que Eitzel frequenta um sítio "horrível"? Oh, pelas melhores razões, claro. "Em São Francisco [onde Eitzel vive] temos desses sítios, mas são 'gentlemen's clubs'. Mas eu gosto do sujo, é mais verdadeiro". E agora tentem perceber como funciona a cabeça do senhor Eitzel e como ele procede à identificação do honesto com o sujo e do limpo com o cínico. "Sempre que vou a um sítio chique fico a pensar que as pessoas me estão a olhar e que pensam que eu vou roubar alguma coisa" - lembramo-nos daquele número da revista Uncut em que, furioso, Eitzel respondia a um inquérito acerca de cinema em que explicava que via os filmes em casa para não ir às salas porque "basically, I hate people"; é a paranóia narcisista e incapaz de ver para lá da ponta do nariz (e nem sequer gosta do dito); vale que dá para fazer canções.
Se em "Patriot's heart" é a América que está em jogo (e a decadência), em "Home" volta-se à obsessão pela marginalidade. "Eu estava num bar e um puto que era DJ de 'deep trance', como se isso me interessasse, pôs-se a falar comigo. Eu era um velho junto ao balcão e só queria beber a minha bebida. E ele sempre a dizer 'sabes qual é o teu problema? Não tens amor suficiente na tua vida. Eu vou para casa e tenho a minha namorada à espera.' E eu fodido, não tinha ninguém à espera, disse-lhe 'Vai-te foder mais às tuas teorias de merda'. E estava a ir para casa e só me ocorreu pensar 'the only thing left in this world that bothers to hate me is my pride'". Frase que, curiosamente, é a porta de entrada do refrão de "Home", e que diz bem do imaginário do pastor sem rebanho. (Que mais não seja, a identificação do ódio com algo de vivo e puro.)
"Home" é uma canção tão mais importante quanto tivermos presente a vida de Eitzel: filho de um engenheiro naval que trabalhava para a Marinha dos EUA, tendo crescido de um lado para o outro, entre França, Taiwan, a China e a Inglaterra. Isto, definitivamente, marcou Eitzel. Mais ainda: assistiu em directo à explosão do punk, em Inglaterra, aderiu ao movimento e quando voltou aos EUA isso apenas serviu para acentuar a sua tendência marginal (e de sentir um marginal desenraizado).
"Era o único punk no 'campus' e ninguém falava comigo", diria, recordando esses belos dias. Acresce dizer que foi aos 14 anos que assistiu ao primeiro concerto punk. Foi também aos 14 que provocou a sua primeira bebida alcoólica, um dry martini. "Adorei. Tanto que nunca mais deixei". E é este o meio, são estas as circunstâncias que constroem Eitzel e que mais tarde se vão reflectir no trabalho a bordo dos AMC: um sentimento de não-pertença e desenraizamento, a capacidade de em duas frases nos desarmar (o homem é, no mínimo, bastante lido); a obsessão com o sucesso, com as figuras de sucesso, a vontade de vender muitos discos - que levaram ao fim dos AMC. E, claro, a decadência.
Já que, até aqui, o Hoper (de Edward, o pintor norte-americano) dos pobres ainda se dava ao trabalho de responder abalançámo-nos a perguntar porque é que em "Myopic Books" Eitzel retorna à imagem da mãe ("she new what was to be lonely", canta a guitarra) e em "Another Morning" ("and I won't bring you another morning with Kathleen", como se se dirigisse aos ouvintes eternos e sedentos de sangue biográfico) a Kathleen Burns, ex-namorada, vítima de excesso de SIDA ou vida. "Estou a acertar contas com as mulheres da minha vida", e "Kathleen foi a melhor poetisa que conheci".
a viragem. Foi justamente em "United Kingdom", com "Kathleen", que se deu a viragem na carreira dos AMC. Não em termos de vendas (nunca ninguém lhes ligou nenhuma) mas sim de música. Até então havia uma grande preponderância das guitarras sujas, por um lado; por outro mudou a abordagem às palavras: o que até então era a descrição de situações sórdidas (putas, drogas, desafecto, auto-mutilação, prisões) começa a tomar um foro mais abstracto, a escrita ganhou contornos crísticos, a linguagem apela, por vezes, à escatologia, canções pontuadas por tiradas venenosas perpassadas por uma espécie de anti-moral de desespero.
"Kathleen" é um belíssimo exemplo do imaginário Eitzeliano: "When no one cares for you/ You're made of straw/ No appointments to keep/ No human law". Retirando factos e descrições, deixando as situações e personagens a pairar no ar, Eiztel atingia aquilo a que todos almejam: a universalidade. Bastava isto: "no human law". E tudo numa canção em que havia apenas o espectro de uma melodia que nem chegava a sê-lo, à guitarra e banjo.
Não foi sempre assim: Eitzel conheceu Vudi (única declaração de Vudi acerca de Eitzel: "o gajo é demasiado sensível"), o guitarrista, em 1981, mas os AMC só chegaram à edição em 1986, ainda por cima com um disco que renegaram, "The restless stranger". Já aí havia a mistura de todas as músicas americanas que mais tarde inspirariam os Uncle Tupelo (e, consequentemente, os Wilco), os Whiskeytown, Will Oldham e toda essa geração. "Engine" (1987) e "California" afinanaram a fórmula, "Everclear" (1991) foi a primeira maravilha, "Mercury" a obra-prima absoluta. É em "Mercury" que se encontra melhor sintetizado o mundo de Eitzel: canções como "Gratitude walks", "I've been a mess" (leiam: "Lazarus wasn't grateful for his second wind/ For another chance/ watch his chances fade like the dawn and leave", e depois: "Your beauty is just a slap in the face/ That's gonna bring me back to life/ Back to another sky that's blue/ It's gonna turn me into another great American zombie") ou "Hollywood, 4-5-92" ("My revenge against the world is to believe everything you say") não perderam um miligrama de pungência e de força. Ainda arrasam, na sua luxúria devastada. Ainda. Não acreditam? Então leiam as palavras de "Johnny Mathis' feet": "Why do you say everything as if you were a thief?/ Like what you've stolen has no value/ Like what you preach is far from belief?" e imaginem o desabar das cordas sobre a voz em pranto. Ainda arrasa.
Por esta altura já Eitzel tinha uma longa história de alcoolismo, uma relação tumultuosa com Kathleen Burns (com quem viveu uma desequilibrada relação durante oito anos) e a vagabundagem no sangue. Também já tinha sido eleito "compositor do ano" pela Rolling Stone, recebido os maiores elogios de Michael Stipe e de Eddie Vedder (enfim, a gente não controla quem gosta de nós), mas nada de dinheiro nem paz. Seguiu-se "San Francisco", que baixava a fasquia (apesar de meia-dúzia de canções extraordinárias) e entre a morte de Kathleen e da mãe e a falta de dinheiro, Eitzel perdia a paciência e lançava-se a solo (resultado: ah, o habitual, claro: discos belíssimos, tanto à guitarra - "'Caught in a trap..." -, como excelsos de arranjos - "60 Watt silver lining"; ninguém ligou nenhuma.) Dizia que nunca mais tocaria com os AMC, que a coisa tinha acabado mal, que a amizade tinha acabado.
(Se até aqui parece estranho só se falar de Eitzel ficam a saber que não, não há nada de estranho nisso. Eitzel é os AMC. É ele a força-motriz. Não é apenas o facto de compor - "antes de ser um compositor sou uma pessoa medíocre" - ou de escrever, é a eterna inquietude.)
"Ainda somos amigos", diz agora Eitzel, "à excepção do Bruce [Kaphan, o homem da slide-guitar] que nunca mais manteve o contacto com nenhum de nós." Kaphan ficou de fora da reunião, por uma razão: "acima de tudo queríamos divertir-nos" e isso seria "impossível com as coisas que ficaram por resolver com o Bruce". Essa nova atitude ("deve ser da idade") reflecte-se não na composição ("nunca penso no processo, tenho medo de ter consciência do que estou a fazer, dessa consciência diminuir a intensidade do que estou a fazer, prefiro andar às cegas") mas no método: "antes era muito difícil fazer canções com eles. Esforçávamo-nos imenso. Agora não. Chegamos e tocamos. É tudo".
Curioso como este "é tudo", perante uma carreira de vinte anos e um novo disco da dimensão de "Love songs", nos faz pensar que este homem diz sempre tudo como se fosse um ladrão cujos furtos não tivesse valor. Ou um padre. Que muito, muito lentamente, começa a ter igreja. Depositamos todas as nossas esperanças aos pés de Eitzel.