Qualquer forma de amor vale a pena
69 Love Songs – The Magnetic Fields (Merge, 1999)
Desde tempos imemoriais, o amor é tema central da música e da poesia. Quantos corações partidos não existem desde que homens e mulheres tentam se relacionar quase sempre embevecidos por algo impalpável e intangível quanto o amor?
Os trovadores, quando desejavam conquistar suas amadas, expressavam a “coita” (sofrimento amoroso) através das cantigas de amor; Bocage desistiu da Arcádia Lusitana para libertar sua poesia de convenções neoclássicas em busca do supra-sumo desse sentimento. Muitos jovens imitaram o suicídio de Werther à constatação da impossibilidade de plenitude.
Música e poesia possuem ligações anteriores às fronteiras da separação imposta, entre elas, pelo Humanismo.
E os multi-significados do sentimento? As ambigüidades? Todos foram expressos por romances, canções, poemas, filmes.
O que dizer da infinita amizade entre Jônatas e Davi? E Dorian Gray (autêntico alter-ego de Oscar Wilde)? Queria ou não, o excesso de sentimentalidades constantes em quase todas as eras sempre existirá, fugindo ou não de clichês.
Stephin Merrit, cantor e compositor, líder dos
Magnetic Fields, compositor competente, injetou nos anos 90 uma levada de rock que mistura sons de banjo, cello, acordeom, com música eletrônica. Suas canções de amor, ora indigentes, ora sarcásticas expressam a melhor crítica contra costumes passadistas e proclama a o amor de todas as formas, sem preconceito.
Em 1999, Merrit escreveu o que podemos chamar um “tratado” sobre canções de amor para todos os gostos, da melodia mais “óbvia” à mais experimental no ótimo álbum triplo “69 Love Songs”. Projetado para conter 100 canções, o álbum levou 3 meses de criação e 9 meses em gravação, com 24 artistas convidados com 69 músicas sobre amor divididas em três cds com 23 canções cada, que podem ser adquiridos separados ou juntos numa luxuosa caixinha e caprichado livro com fotos e entrevistas.
The Magnetic Fields
Os vocais são divididos entre Stephin Merrit (a maioria), Claudia Gonson (vocalista dos Future Bible Heroes, outro projeto de Merrit) e convidados como LD Beghtol, Dudley Klute e Shirley Simms.
São muitos os temas relacionados ao assunto amor numa profusão de estilos musicais, e vários instrumentos entre cravos, banjos, violinos, cellos etc. e da incensada característica de Stephin Merrit como compositor: uma verdadeira enciclopédia de melodias.
69 Love Songs, vol. 1 comporta temas como amores equivocados (“Absolutely Cuckoo” com melodia quase infantil); solidão: “o único sol que conheci / foi sua rara beleza / desde que você se foi / é noite o dia todo / e chove sempre /As únicas estrelas que realmente existem / estão brilhando nos seus olhos / Não há nenhum sol exceto / o único que nunca brilhou sobre outros rapazes / A lua por quem os poetas suspiram / foi abandonada e morreu / a astronomia deve ser revisada” em “I Don’t Believe In The Sun”; Há letras propositadamente melodramáticas como “Reno Dakota” cantada por Claudia Gonson acompanhada por um banjo: “Reno Dakota não há a mínima bondande em você / pois sabe que me encanta / e ainda não me chama / me fazendo entristecer / Reno Dakota esgotei minha cota de lágrimas para este ano / ai de mim, ai meu Deus / você não me chama de volta / você só pode estar desaparecido / isto me faz beber cerveja / Eu sei que você é recluso / você sabe, não há desculpas / Reno isto é apenas uma artimanha / Não brinque rápido e nem abandone meu coração."
Há diversão/desolação em “Let's Pretend We're Bunny Rabbits”, e “I Don't Want to Get Over You”; melodias assobiáveis em “I Think I Need a New Heart” e “All My Little Words” (a melhor música desse primeira volume): “És uma esplêndida borboleta / Serão tuas asas a te embelezarem? / Eu posso fazer-te voar distante / Mas nunca fazer com que fiques / Nem por todo chá na china / Nem se como um pássaro eu cantasse / Nem por toda Carolina do Norte / Nem por todas minhas pequenas palavras / Nem mesmo se te escrevesses / a mais doce canção. / Não importa o que faço / nem por todas as minhas pequenas palavras (...)”
69 Love Songs, vol. 2 é tão bom quanto o primeiro, começa com L.D. Beghtol (um dos vocalistas convidados) à capela em “Roses” seguida pela “jazzística” “Love Is Like Jazz”. “When My Boy Walks Down The Street” é uma das canções de apelo homossexual, assim como a belíssima “Papa Was a Rodeo”: “eu vejo aquele "beije-me" enrugado se formando / mas talvez você deveria tapá-lo com uma cerveja porque / Papai foi o rodeio / Mamãe uma banda de rock and roll / Eu posso tocar guitarra e laçar uma novilha / antes eu aprendi a esperar / Casa foi qualquer lugar movido a diesel / amor foi a mão de um caminhoneiro / Nunca perambulei por aí procurando amor por uma única noite / Antes de me beijar você deveria saber / Papai foi o rodeio. / A luz refletida na bola de vidro parece um turbilhão com mil olhos / Eles me fazem pensar que eu não deveria estar aqui por nada / Você sabe, a cada minuto alguém morre / O que estamos fazendo neste bar decadente? / Como você pode viver num lugar como este? / Por que você não quer entrar no meu carro? e eu o terei, darei aquele beijo agora.” e na
Abbaesque “Long-Forgotten Fairytale”: “te vi pela última vez no verão / você me disse detestar longas despedidas / e que não havia nada a explicar / em cada vida uma pequena chuva et cetera / e um conto de fadas há muito esquecido / está nos seus olhos novamente / fui pego dentro do mundo dos sonhos / onde as cores são mais intensas e nada faz sentido. / Há uma cidade flutuante de edredom / numa nuvem de mistério / Há um velho castelo encantado / e a princesa que há sou eu / enfeitada como uma árvore de natal. / Eu você continua com sua piadinha / mas eu perdi o meu senso de humor”.
69 Love Songs, vol. 3 possui algumas canções “tradicionais”, com roupagem passadista ecoando Kurt Weil (“Zebra”), temas eruditos bacheanos (“For We Are the King of the Boudoir”) e canções dos mais variados estilos. “Blue You”, tem a atmosfera instrumental que parece ter saído de “A Manhã” de Grieg. Claudia Gonson emociona à Joan Baez na folk “Acoustic Guitar”: Violão, eu te farei uma estrela /Terá sua foto estampada por todo o mundo / Você poderá ter seu próprio carro / traga apenas de volta a minha garota / Ela sempre amou o som do seu dedilhado / você a faz pensar que talvez eu não seja tão burro / Ela tende a desfalecer ao som do tambor / Porque ela é folk, / então toque e talvez ela virá.”. Há também um inusitado encontro entre Stephin e o lingüista Ferdinand de Saussure em “The Death of Ferdinand de Saussure”: "Conheci Ferdinand de Saussure numa noite como esta. / No amor ele disse "não tenho certeza / eu até sabia o que era / sem entendimento, nem conclusão. / Isto é um castigo merecido / Você não pode utilizar escavadeira para estudar orquídeas, ele disse, 'então / Não sabemos nada / Você não sabe nada / Eu não sei nada sobre o amor / Mas não somos nada / Você é nada / Eu sou nada sem amor' / Sou apenas um grande compositor e não um homem violento, / mas perdi minha compostura e atirei em Ferdinand.”. Tente ficar parado em “I'm Sorry I Love You” com vocais de Shirley Simms, impossível.
69 Love Songs é um álbum difícil de se resenhar, são tantas qualidades reunidas em 69 canções que precisaria um compêndio para explicar esta obra-prima. Foi ignorado pela maioria das listas de melhores dos anos 90, mas ainda há tempo de corrigir o erro. Mas atenção: ecletismo e falta de preconceito são indispensáveis para a apreciá-lo.